sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sobre crescer


Essa é a hora que você passa uma linha divisória no caderno e recomeça do zero na mesma página - afinal, o ano é tão curto, as matérias são poucas e não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar folhas. Passe a limpo o que acertou e coloque entre parêntese o que errou, para que lembres que os teus acertos só foram possíveis por intermédio de seus erros. Simples assim.


Tarcila Santana

Rotina


Gláucia dirigia o carro; seu marido sentado ao lado; e sua filha na cadeirinha do banco de trás.
O veiculo já estava parado em frente à casa dos pais de Erick.
O cachorro latia desesperadamente encostado no portão – havia reconhecido a voz do seu antigo dono.
-  Preciso comprar a roupa para a festinha de fim de ano da Julia, Gláucia. Dizia ele, em tom preocupado.
- Querido, já falamos sobre isso ontem. Vá até a loja e escolha algo bem bonito! Confio no teu bom gosto! Respondeu Gláucia, analisando no espelho retrovisor, se seus óculos escuros haviam combinado com seu penteado amarrado.
- Eu sei... Mas, gostaria de sua opinião. Você sabe o quanto sou inseguro nessas coisas... – Essa fala era quase uma súplica aos ouvidos de Gláucia.
 A mulher tirou as mãos do volante, pegou a bolsa no banco em que sua filha estava, tirou um chegue da carteira e uma parcela em dinheiro.
- Pare de besteira! Você sempre fez isso sozinho. Pegue! Isso deve ser o suficiente para comprar o vestido...
- Jardineira, Gláucia! – corrigiu ele.
- Certo, certo! Acho bom você adiantar enquanto levo  Julia à escola. Peça ajuda a sua mãe.
Gláucia liga o carro. Erick sai, fecha a porta, vai até a janela onde sua filha estava, olha se está tudo em ordem (e não poderia ser diferente – era uma mania dele), beija a testa da garota e aguarda o carro sair.
Antes de pegar velocidade, Gláucia lembra de avisar algo ao marido – buzina, arrancando um olhar repentino do homem em direção ao carro:
- Ah, querido! Esqueci de te dizer! Hoje tem jogo, chegarei mais tarde. Quando acabar, passo ai pra te pegar.
E como de costume, a rotina continua.


Tarcila Santana

Para passar o tempo



Eu via um único farol ao longe. Passou rápido como de costume. Deixou lembranças duvidosas de que aquilo realmente tinha acontecido.
Uma senhora anda devagar com um livro nas mãos e distribui “boa noite”.
O cachorro vem de cabeça baixa e rabo entre as pernas.
O homem na bicicleta equilibra seu filho e sua vida na garupa.
Uma criança malcriada, solta a mão de sua mãe e atravessa a rua para pegar a bola que, num descuido, havia caído.
Eu espero meu sono chegar. Tão devagar. Tão cansativo. E nada me faz falar de amor. 



Tarcila Santana

Feras


Agora, eu acho bom não te ter pra mim.
Não é orgulho, entenda.
Mesmo que me assegurasse a sua posse,
você não seria completamente minha.
 – Não conseguiríamos ser intensos como
somos na possibilidade de sermos. 
A tua voz gritaria alto, me arrancando
teu silêncio que me faz escrever.
Teus movimentos não cantariam músicas leves
e os meus ouvidos ficariam saudosos.
Tuas mãos não coreografariam balé clássico
e meu corpo seria tão parado, tão sem graça.
Hoje, não te quero - mas não porque não te amo
– não te quero, porque o meu amor está em não te ter.
Caso a tivesse, não serias tão viva, tão minha.
E se tu fosses minha,  
eu mataria esse leão que há dentro de ti e
duas feras morreriam: eu e você.




Tarcila Santana

Pode ir agora .

Essa ânsia de sabe Deus o quê, me consome muito.
Poderias, por gentileza, devolver as minhas partes?
- os meus olhos, o meu corpo e a minha roupa suja?!
Devolva-me! Afinal, nada disso é seu. E é tudo tão seu...
Como fará para enxugar as lagrimas que provocastes?
Como aquietará o silencio que tanto machuca?
Como sairá se prometestes ficar para sempre?
Viúva de amores tão vivos, tão mortos.
Sai! Vai embora!
Rapariga de amores tão quentes, tão calmos.
Fuja! Deixe-me em paz!
Esposa de amores tão fiéis, tão vagabundos.
Corre! Não te quero aqui!
Amante de amores tão duradouros, tão passageiros.
É para sempre, entende?!
É para eternidade, entende?!
- não. Você não iria entender.


Tarcila Santana

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Crianças do Pelourinho









Na ladeira do pelourinho,
as crianças já falavam de amor.
Maria não queria brincar de roda.
Maria não queria por causa de João.
As crianças cantavam ciranda-cirandinha:
“o anel que tu me deste, era vidro e se quebrou;
o amor que tu me tinhas, era pouco e se acabou...”
e Maria via a roda girar.
Maria nem sabia que o mundo também gira.
As crianças já falavam de amor no Pelourinho. 





Tarcila Santana - 02/12/2011

domingo, 27 de novembro de 2011

A Louça

  Um UNO vermelho de duas portas, parou em frente aquela casa de pintura verde envelhecia, e pedaços descascados como as rachaduras dos pés do vizinho. Buzinou. Um garoto de quatro anos saltara porta a fora na curiosidade de seus impulsos de um quase recém-nascido; Agarrara com toda sua força à grade do portãozinho branco, encostando o seu rosto ao arame posto por seu avô na primeira tentativa de fuga de Dick. Dick era o cachorro.
  Sua mãe ficara furiosa, afinal, dissera mais de mil vezes que não se deve abrir a porta para estranhos, ora essa! Correu na tentativa frustrada de conter a ânsia do menino. Tentativa frustrada e como era frustrada aquela tentativa. Antes que pudesse, mais uma vez, reclamar encarando os olhos fundos, fundos e verdes, verdes e vivos da criança, deparou-se com sua antiga vizinha e seu marido, ora não tão novos e viçosos como antes. Como eram, ou se esperava ser. Quer dizer, com a vizinha de sua mãe. A casa não era dela. Nisso, a velha, que agora sentada no sofá, pronta para o seu cochilo vespertino pós-almoço, se pôs a gritar “Silvia! Silvia! Silvia, minha filha – veja quem parou o carro na porta. Silvia!, tem gente chamando! Sil...”, Silvia já estava lá fora, mas ela insistia em gritar. Porque, meu Deus?! – Pobre Silvia. “Estou aqui, minha mãe!”, dizia incansavelmente conformada de que não adiantaria responder só uma vez – Ela nunca ouvia. Não ouvia, sei lá por que. Ela era quase cega e não surda; sempre reclamara quando alguém se dirigia a ela num tom mais alto. Vai entender...
  Lá fora, todos se abraçavam saciando uma saudade que não se sentia todos os dias. “Mamãe, adivinhe quem chegou!”, gritava Silvia falsamente entusiasmada. “Dona Zélia, mamãe!”, acrescentou. A velha, em movimentos quase parados, levantou-se com dificuldade do sofá de capa vermelha – abraçou suas visitas inesperadas, rogando sem medir folego as novidades. Zélia, tomada por súbita lembrança, perguntara sobre sua neta mais velha, que há muito, viu nascer. Por um momento não houve resposta. Noutro, foram interrompidas pelo barulho de seus maridos ao se reencontrarem. Logo saíram de cena, ganhando à calçada, onde por vezes, conversaram coisas de homem e sobre politica. “No quarto”, disse ela quebrando o milésimo de silencio que ali reinara. “Carol, está no quarto”. Assim, berrou desesperadamente a menina para que viesse desfilar a educação que lhe fora dada em tantos anos de criação. Essa é outra história.
- Olá, como vai?, dizia a moça abraçando de lado aquele corpo que depois de anos, o seu, não mais reconhecia. – como foi a viagem?!, Insistia num impulso de obrigação cordial.
- Estou bem, querida! Nossa! Como você cresceu! Respondeu Zélia, também, sem reconhecer a garotinha de meiguice desaparecida que um dia ela ajudou a criar.
O outro corpo assistia tudo com um sorriso de expectativa. De que? Bem, só expectativa. Um novo assunto surgiu. Carol, inexplicavelmente, num descuido de olhares daquelas arcaicas amigas, entrou novamente em seu quarto e fechou a porta para o mundo. Silvia, que banhava seu menino, passou na sala enrolando a toalha naquele corpo tão pequeno de algodão – ele sempre achava o máximo.
- Prepare o jantar, Silvia.
- Sim, meu pai! Está quase pronto. Disse olhando para o relógio que já marcava aproximadamente 7hs da noite.
Naquela mesa de seis cadeiras, todos se reuniram como se reúne um rebanho. Alguns com sopa, outros com café e leite – só um bebê que não havia entrado na história, tomava mingau na mamadeira. Carol no quarto, não sentia fome nas horas normais, digamos.
- Venha ajudar sua tia, Carol! Tem louça para lavar! – resmungava sua avó, batendo cuidadosamente na porta do quarto, receosa que as visitas ouvissem que era necessário pedir a uma moça já criada que colaborasse com os afazeres de casa.
- Já vou! Foram as únicas palavras. Pelo menos, as únicas que Carol disse em alto e bom som. Afinal, a louça sempre sobrara para ela. Apesar de não sujar, era sempre dela. Dela e de mais ninguém.
Ela nunca entendera esse negocio de ter que lavar o que o outro sujou. Seu coração nunca se conformou com essa coisa de lidar com os restos amargos dos outros, Mas, ali estava ela – pronta para lavar, enxugar, guardar, até que novamente se sujasse tudo de novo. E lavou, lavou, lavou.
  As visitas, agora, se despediam. Na cozinha não apareceram. Saíram apressados, pois, iria à casa de outro alguém, talvez sujar pratos, e seguir seu rumo.
  Toda a família acenava para o carro que sumia na pequenez da rua. Acenava como se acena para um trem.
  E lavou, lavou, lavou. Acabou. Carol voltara para a escuridão de seu mundo, ou melhor, de seu quarto – e dorme. E todos dormem, dormem e já é dia. Já é dia e tomam café. Horas mais tarde, sempre depois do almoço, alguém bate palmas na porta da casa: o menino, novamente, saltara porta a fora na curiosidade de seus impulsos de um quase recém-nascido, com aqueles olhos de ontem – fundos, fundos e verdes, verdes e vivos.



Tarcila Santana - 28 de novembro de 2011